A NÃO OBSERVÂNCIA DA EXCLUSÃO DE COBERTURA PARA PANDEMIAS NO SEGURO DE VIDA

*Artigo publicado no LinkedIn – https://www.linkedin.com/pulse/n%25C3%25A3o-observ%25C3%25A2ncia-da-exclus%25C3%25A3o-de-cobertura-para-seguro-benes-senhora/?trackingId=QC%2FwEKMYQwyFiVCHcBidtw%3D%3D

Os meios de comunicação, sobretudo as redes sociais, têm levado ao conhecimento do público em geral, decisões adotadas por algumas seguradoras do ramo vida, no sentido de que para os sinistros decorrentes da COVID-19 será oferecida cobertura securitária, a despeito da pandemia declarada por órgão competente constituir risco excluído das apólices.

Muito provavelmente essas decisões foram influenciadas pelo comunicado à sociedade realizado pela FENACOR[1], ao sugerir e apelar “às seguradoras para que, de imediato, não apliquem nos contratos de seguros quaisquer cláusulas de exclusão ou restritivas de direitos relacionadas às epidemias ou pandemias, permitindo, assim, a ampla cobertura para eventuais casos de sinistros[2]

A problemática que se instala é a de saber se a seguradora possui ou não essa discricionariedade para adotar tal medida, considerando as razões de ordem técnica na qual se funda o contrato de seguro.

A essência do seguro é a mutualidade. O seguro se conceitua na técnica de repartição dos efeitos danosos entre um grupo de pessoas que se reúnem para formar um fundo financeiro comum, que será utilizado para proteção contra a materialização dos riscos.[3] Por outras palavras, funda-se na técnica atuarial de diluição de riscos, partilhando as conseqüências econômicas do sinistro entre um grande número de pessoas submetidas a riscos homogêneos[4]

O papel da seguradora é fazer a gestão desse fundo comum, garantindo que na hipótese de ocorrer determinado evento adverso, haverá a compensação econômica para aquela pessoa não afortunada.[5]

O segurador que administra essa coletividade de recursos captados do público tem o dever de zelar pela higidez do fundo, de modo a garantir[6] a coletividade segurada contra a verificação dos riscos cobertos.

Vale dizer que o seguro é uma operação fiscalizada e coordenada pelo Sistema Nacional de Seguros, constituído pelo Conselho Nacional de Seguros Privados (“CNSP”) e pela Superintendência de Seguros Privados (“SUSEP”). As determinações emanadas desses órgãos têm, dentre outras, a finalidade salvaguardar a solvência do sistema, cuja mais grave ameaça é a quebra da base técnica-atuarial[7].

Vê-se, pois, que comunidade de seguros visa a proteção do segurado, mas não somente daquele que supõe tenha direito à indenização pelo infortúnio ocorrido, mas de todos, da coletividade. Não é por outra razão que a seguradoras estão suscetíveis a sanções pelo órgão regulador caso realize o pagamento de indenização que não esteja claramente coberta pelo contrato de seguro[8].

Fixadas essas breves premissas, no caso da exclusão de cobertura para eventos decorrentes de pandemias, destaca-se que ela é perfeitamente admitida pela SUSEP, como se observa do artigo 12, I, “d”, da Circular 440/2012 e do item 69 da “Lista de Verificação –Seguro de Pessoas”[9]

A razão de tal exclusão se dá pelo fato de que esse tipo de risco não é tido como ordinário, aquele em que as pessoas estão diariamente expostas e cujas consequências danosas existem estatísticas seguras de dimensionamento quanto aos eventuais prejuízos, mas sim, de um risco de natureza extraordinária, com decorrências econômicas que extrapolam o regularmente previsto, a exigir, para a cobertura desse tipo de evento, cláusulas especiais e tarifação adicional (prêmio), tudo com o objetivo de salvaguardar o fundo securitário e garantir que haja recursos suficientes para fazer frente a eventuais sinistros.

Nesse sentido:

“Apesar de sua denominação genérica, os riscos não são da mesma natureza. Não ocorrem com a mesma frequência nem com a mesma regularidade. Produzem resultados também diversos. Alguns têm repercussão profunda para o meio social, como, por exemplo, o risco de guerra, de terremoto, de epidemia etc. Outros afetam apenas os interesses individuais, variando sua intensidade de acordo com sua própria característica.

Não obstante essa diversidade, todos eles são em princípio seguráveis. Dividem-se, porém, em dois grupos: riscos ordinários e riscos extraordinários. Os primeiros apresentam um comportamento estatístico regular, com uma variação escalonada dentro de limites que permitem calcular os coeficientes matemáticos necessários à organização técnica dos planos de seguro. Os segurados carecem dessa regularidade. Não se submetem a uma análise estatística eficiente. Suas causas e seus efeitos são incontroláveis e imprevisíveis, reduzindo ou anulando as possibilidades técnicas de estabilização através da lei dos grandes números. Os riscos extraordinários reclamam, então, um tratamento especial do segurador para sua cobertura, através do estabelecimento de padrões técnicos que possam compensar sua instabilidade. O prêmio pago pelo segurado é sensivelmente maior.

Por força dessas condições especiais, dos riscos extraordinários, sua cobertura é geralmente feita separadamente. São excluído expressamente da cobertura dos riscos ordinários. Podem ser admitidos no mesmo contrato, mediante o pagamento de prêmio especial, além do que é devido para os riscos normais[10].

Sobre essa perspectiva, de ordem estritamente técnica, parece não ser dado ao segurador ampliar a cobertura sem que o risco a que está vinculado tenha sido objeto da subscrição e consequentemente da fixação do prêmio correspondente, não só por colocar em risco a solvência do fundo por ele administrado[11], mas também por repassar aos demais segurados da mutualidade, sem aquiescência destes, os custos dos saques a serem realizados, pois natural o aumento da sinistralidade e consequentemente a necessidade de se repor o prejuízo, mediante a arrecadação maior de prêmio nas respectivas renovações das apólices[12].

Ressalva-se, contudo, que nada impede que as seguradoras nas novas apólices de seguro de vida retirem tal exclusão, pois se assim fizerem, certamente considerarão na taxação do seguro esse natural aumento de risco, de modo que o equilíbrio em relação a base econômica do contrato estará preservado, aliás, como ocorre em Portugal, conforme se observa do recente pronunciamento da Associação Portuguesa de Seguradores[13].

A propósito do tema, no último dia 25/03/2020, o Senador da República Randolfo Rodrigues apresentou o Projeto de Lei 890/2020, com o objetivo de alterar o Código Civil, criando o artigo 798-A, para estabelecer que o segurador “não pode eximir-se ao pagamento do seguro, ainda que da apólice conste a restrição, se a morte ou a incapacidade do segurado provier da infecção por epidemias ou pandemias, ainda que declaradas por órgão competente”.

Sem adentrar na análise das justificativas que levaram a tal proposição, o fato é que, como já dito, para o segurador garantir os efeitos danosos de epidemia e pandemia no seguro de vida, essa circunstância deve previamente ser considerada na subscrição[14] e os segurados contribuírem com o pagamento do prêmio na respectiva medida necessária a manutenção sadia do fundo mutual.

[1] Federação Nacional dos Corretores de Seguros Privados e de Resseguros, de Capitalização, de Previdência Privada, das Empresas Corretoras de Seguros e de Resseguros

[2] https://www.fenacor.org.br/noticias/comunicado-a-sociedade-e-a-imprensa 

[3] ALVIM, Pedro. O contrato de Seguro, Editora Forense. Ano 1999. 3ª edição. Pág. 18/19. Rio de Janeiro

[4] “Na verdade, a operação de seguro implica a organização de uma mutualidade, ou o agrupamento de um número mínimo de pessoas, submetidas aos mesmos riscos, cuja ocorrência e intensidade são suscetíveis de tratamento atuarial, ou previsão estatística segundo a lei dos grandes números, o que permite a repartição proporcional das perdas globais, resultantes dos sinistros, entre os seus componentes. A atividade do segurador consiste justamente na organização dessa mutualidade, segundo a exigência técnica de compensação do conjunto de sinistros previsíveis pela soma total de contribuições pagas pelos segurados. Por aí se vê que o prêmio de seguro não representa, de modo algum, para o segurador, a contrapartida do risco assumido em determinado contrato, mas sim a cota-parte cabível ao segurado na repartição do montante global dos riscos que pesam sobre a mutualidade.” (Comentário ‘ in RDM, nº 7, ano XI, Ed. RT, Nova Série, 1972, pp. 108-110)

[5] “Y el modo de eliminar los efectos derivados del alea se alcanza mediante el agrupamiento de una multitud o mutualidad de asegu­rados que contribuirán proporcionalmente con cada una de sus respectivas cotiza­ciones o premios a un fondo común de una misma empresa. De dicho fondo se ex­traerán las sumas de dinero con las que se afrontarán los siniestros, en beneficio de los integrantes de la mutualidad. Esta última que, como queda expresado, implica agrupamiento de personas, comunidad de riesgos y contribución a un fondo, es la que permite amortiguar los efectos del alea, neutralizar la entidad de los riesgos realizados (siniestros), frac­cionar o diluir sus consecuencias”.( tiglitz, Rubén. Derecho de Seguros. Vol. I, Ed. Abeledo-Perrot, B. Aires, 3ª edição pág. 28).

[6] Expressão utilizada sistematicamente no Código Civil, ao definir o seguro, a exemplo dos artigos 757, 759, 760, 762, 766, 768, 769 e 778.

[7] “La empresa que, con carácter profesional, tiene por objeto la organización de la actividad aseguradora y que se traduce en la conclusión repetida y continua de contratos de seguros, debe operar científicamente y para ello la referida actividad debe fundarse en una serie de criterios o normas técnicas cuya eficacia se halla con­dicionada a la obtención de la más amplia masa de riesgos. En efecto, para que la empresa de seguros pueda indemnizar todos los siniestros garantizados es necesa­rio que organice la mutualidad de riesgos según reglas matemáticas rigurosas que son el fundamento de su técnica operativa.” (Ob. Cit. Vol. II – pág. 468).

[8] Esse princípio pode ser extraído no artigo 33 da Resolução CNSP 243/2011

[9]http://www.susep.gov.br/setores-susep/cgpro/copep/LISTA%20DE%20VERIFICACaO_SegurosdePessoas_v10_09_12.pdf

[10] ALVIM, Pedro. O contrato de Seguro, Editora Forense. Ano 1999. 3ª edição. Rio de Janeiro

[11] O artigo 63 da Resolução CNSP 243/2011 estabelece multa caso a seguradora faça sua gestão “de forma temerária, colocando em risco o seu equilíbrio financeiro ou a solvência dos compromissos assumidos”.

[12] Importante destacar que a Susep até o momento não se pronunciou acerca das decisões das seguradoras em admitir a cobertura para a pandemia do coronavírus, a despeito da exclusão de cobertura.

[13] https://www.editoraroncarati.com.br/v2/Artigos-e-Noticias/Artigos-e-Noticias/Associacao-Portuguesa-de-Seguradores-Coronavirus-posicao-do-Setor-Segurador.html

[14] “O aperfeiçoamento da contratação do seguro é precedida da chamada subscrição, que significa a fase pré-contratual onde o segurador recebe do pretenso segurado a declaração dos elementos essenciais do interesse a ser garantido e do risco (art. 759 do Código Civil) e, a partir de tais informações avalia o interesse e possibilidade, inclusive econômica, de aceitar garantir as perdas em caso de materialização do risco proposto”. https://www.migalhas.com.br/depeso/305916/os-impactos-da-lei-geral-de-protecao-de-dados-no-seguro-de-pessoa.

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