”Publicado no STJ em 28/03/2021″
Nas palavras da ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Nancy Andrighi, o seguro-garantia pode ser definido como o contrato pelo qual uma seguradora presta garantia de proteção aos interesses do credor (segurado) relativos ao cumprimento de uma obrigação (legal ou contratual), nos limites da apólice. Nessa espécie contratual – explicou –, o devedor é o tomador da garantia perante a seguradora, com a indicação de seu credor como segurado e beneficiário direto da prestação ou indenização a ser implementada pela seguradora se o sinistro – ou seja, o inadimplemento – se concretizar.
Segundo a ministra, esse ramo securitário foi concebido no ordenamento jurídico brasileiro, inicialmente, para a garantia do cumprimento de obrigações assumidas em contratos privados e na contratação de obras e serviços pela administração pública.
“Até então, não se cogitava, ao menos no plano normativo, da possibilidade de oferecimento do seguro-garantia em sede de processo judicial. Essa figura apenas surgiu quando da publicação da Circular 232/2003 da Superintendência de Seguros Privados (Susep), que regulamentou, entre as várias modalidades de seguro-garantia, aquela destinada a garantir o pagamento de valor correspondente aos depósitos em juízo que o tomador necessite realizar no trâmite de procedimentos judiciais”, afirmou (a Circular 232/2003 foi revogada pela Circular 477/2013 da Susep).
A magistrada lembrou que a hipótese foi incorporada ao Código de Processo Civil de 1973, que estabeleceu a possibilidade de substituição da penhora por fiança bancária ou seguro-garantia judicial, desde que acrescido ao valor do débito o percentual de 30%.
De acordo com a magistrada, mais recentemente, o Código de Processo Civil de 2015 trouxe importante modificação nesse tema, ao dispor sobre a ordem preferencial de bens e a substituição da penhora, expressamente equiparando a fiança bancária e o seguro-garantia judicial ao dinheiro (artigo 835, parágrafo 2º).
Efeitos jurídicos
Diante dessa inovação, a Terceira Turma do STJ se posicionou no sentido de que, na fase de cumprimento de sentença, “a fiança bancária e o seguro-garantia judicial produzem os mesmos efeitos jurídicos que o dinheiro para fins de garantir o juízo, não podendo o exequente rejeitar a indicação, salvo por insuficiência, defeito formal ou inidoneidade da salvaguarda oferecida”.
Ao dar provimento ao REsp 1.691.748, o relator, ministro Villas Bôas Cueva, destacou que o seguro-garantia judicial harmoniza o princípio da máxima eficácia da execução para o credor com o princípio da menor onerosidade para o executado, conferindo proporcionalidade aos meios de satisfação de crédito.
O ministro também foi o autor do voto que prevaleceu no julgamento do REsp 1.838.837 na Terceira Turma, o qual reafirmou o entendimento de que o seguro-garantia judicial produz os mesmos efeitos jurídicos que o dinheiro, seja para garantir o juízo da execução, seja para substituir outro bem que tenha sido penhorado.
De acordo com o magistrado, embora o parágrafo 2º do artigo 835 do CPC se refira à “substituição da penhora” – o que pressupõe ter havido penhora anterior –, o dispositivo não pode sofrer tal restrição. “Não faria nenhum sentido condicionar a eficácia do dispositivo à prévia garantia do juízo segundo a ordem estabelecida no artigo 835 do CPC/2015 para, somente após, admitir a substituição do bem penhorado por fiança bancária ou seguro-garantia judicial. Tal exigência, além de inócua, serviria apenas para retardar a tramitação da demanda, contrariando o princípio da celeridade processual”, observou.
O colegiado reformou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que rejeitou a substituição da penhora por seguro-garantia, ao fundamento de que a lei daria preferência à penhora sobre dinheiro em espécie, depósito bancário ou aplicação financeira. No caso, a parte exequente contestou a garantia oferecida diante do “iminente risco” de frustração da execução por falta de idoneidade da apólice.
Para Villas Bôas Cueva, “a idoneidade da apólice de seguro-garantia judicial deve ser aferida mediante verificação da conformidade de suas cláusulas às normas editadas pela autoridade competente – no caso, pela Susep –, sob pena de desvirtuamento da verdadeira intenção do legislador ordinário”.
Crédito não tributário
Em 2019, a Primeira Turma entendeu que é cabível a suspensão da exigibilidade do crédito não tributário a partir da apresentação da fiança bancária ou do seguro-garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da petição inicial, acrescido de 30%.
O relator do EREsp 1.381.254, ministro Napoleão Nunes Maia Filho (aposentado), explicou que o entendimento contemplado na Súmula 112, de que o depósito somente suspende a exigibilidade do crédito tributário se for integral e em dinheiro, não se estende aos créditos não tributários originados de multa administrativa imposta no exercício do poder de polícia.
Para o relator, como não existe previsão legal de suspensão de exigibilidade de crédito não tributário na legislação brasileira, é possível aplicar à hipótese, por analogia, o artigo 848 do CPC.
Napoleão Maia Filho reforçou que, para o legislador, no momento em que a Fazenda Pública exige o pagamento da dívida ativa, tanto o dinheiro quanto a fiança ou o seguro-garantia judicial são colocados imediatamente à sua disposição. “Daí por que a liquidez e certeza do seguro-garantia fazem com que ele seja idêntico ao depósito em dinheiro”, afirmou.
O mesmo entendimento, contudo, não pode ser aplicado nos casos de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, cujas hipóteses estão taxativamente previstas no artigo 151 do Código Tributário Nacional. A jurisprudência do tribunal é no sentido de que a prestação de caução, mediante o oferecimento de seguro-garantia e fiança bancária, apenas serve para garantir o débito exequendo, em equiparação ou antecipação à penhora, com o escopo precípuo de viabilizar a expedição de Certidão Positiva com Efeitos de Negativa e a oposição de embargos (AgInt no REsp 1.854.357).
Execução fiscal
A jurisprudência também é firme no sentido de não admitir o uso do seguro-garantia judicial como caução na execução fiscal, por ausência de norma legal disciplinadora do instituto.
No AREsp 266.570, o relator, ministro Herman Benjamin, citou precedentes que explicam que a referida caução não está inserida na ordem legal de garantias que podem ser oferecidas pelo executado, nos termos do artigo 9º da Lei 6.830/1980. Para o ministro, esse diploma legal é a norma especial que regula o processo executivo fiscal, sendo inadmissível o uso do seguro-garantia sem que nele esteja previsto.
Apesar de seu caráter subsidiário, o STJ possui entendimento de que a norma do artigo 835, parágrafo 2º, do CPC – que exige, na substituição da penhora por fiança bancária ou seguro-garantia judicial, que o valor corresponda ao débito atualizado acrescido de 30% – também é aplicável às execuções fiscais.
Segundo afirmou Herman Benjamin, no julgamento do REsp 1.841.110, apenas nas hipóteses de garantia originária da dívida fiscal não é razoável exigir acréscimo de 30%.
O ministro explicou que o dispositivo do CPC tem por finalidade evitar que o transcurso do tempo torne insuficiente a garantia prestada por meio de fiança bancária. Ele ressaltou que é indispensável verificar, em cada caso, se a garantia oferecida contém cláusulas específicas que preservem o valor, sob pena de ser exigível o acréscimo previsto no CPC para sua utilização, nos termos admitidos no artigo 9º, II, da Lei de Execução Fiscal.
No caso em análise, o ministro verificou que a hipótese não seria de substituição de penhora, mas de garantia inicial prestada em execução fiscal, logo após a citação da parte devedora, razão pela qual, em tese, não se aplicaria o acréscimo de 30%.
Recuperação judicial
Em agosto de 2020, a Terceira Turma definiu que compete ao juízo da recuperação prosseguir com os atos executórios contra uma empresa em recuperação, na hipótese de ter sido oferecido seguro- garantia nos autos da execução decorrente de ação trabalhista.
No julgamento do CC 161.667, o relator, Villas Bôas Cueva, explicou que, no seguro-garantia judicial, a relação existente entre o garantidor (seguradora) e o credor (beneficiário) é distinta daquela existente entre o credor (exequente) e o garantidor do título (coobrigado), visto que, no primeiro caso, a relação resulta do contrato de seguro firmado e, no segundo, do próprio título. Esse é o motivo – ressaltou – pelo qual a execução pode prosseguir contra o garantidor do título, mas nem sempre contra a seguradora.
Segundo o ministro, com o deferimento do processamento da recuperação judicial, os créditos existentes na data do pedido serão submetidos a seus efeitos e deverão ser pagos na forma do plano aprovado. Para ele, isso significa que o crédito será novado, só gerando efeitos para o devedor em recuperação (artigo 49, parágrafo 1º, da Lei de Recuperação e Falência).
O relator destacou que, quanto à seguradora, como a relação jurídica é regulada pelo contrato de seguro, o pagamento da indenização somente poderá ser determinado se e quando verificada a ocorrência do sinistro, observada a extensão dos riscos cobertos pela apólice.
Na hipótese de haver o deferimento da recuperação judicial – afirmou –, a execução contra o devedor principal será extinta, diante da ausência de título que lhe dê suporte, e somente será possível exigir o depósito da indenização pela seguradora se tiver ficado caracterizado o sinistro em momento anterior ao do pedido de recuperação, observada a extensão dos riscos cobertos pela apólice.
Momento do sinistro
A partir das premissas de que o dever de pagar a indenização por parte da seguradora nasce a partir da ocorrência do sinistro e de que a aprovação do plano de recuperação judicial implica a novação da dívida garantida, o relator concluiu que, se o fato caracterizador do sinistro não tiver ocorrido até o deferimento do processamento do pedido de recuperação, a novação da dívida garantida impede a execução da apólice.
No entanto, se o fato caracterizador do sinistro tiver ocorrido antes do deferimento do pedido de recuperação e, por qualquer motivo, ainda não houver sido realizado o pagamento da respectiva indenização, poderá o juízo determinar que a seguradora o faça. O ministro observou que essa determinação não acarreta diminuição no patrimônio da empresa recuperanda, visto que a incumbência do depósito recairá sobre a seguradora, e não ofende o princípio da igualdade entre credores, considerando que a seguradora, ao se sub-rogar nos direitos e privilégios do segurado contra o tomador, terá que habilitar seu crédito na recuperação.
“Assim, o pagamento da indenização, pela seguradora, poderá ser determinado se ficar caracterizado o sinistro e se este tiver ocorrido antes do deferimento do processamento do pedido de recuperação judicial”, concluiu.